Organizações da sociedade civil na América Latina pedem uma transição energética justa e um “novo paradigma de desenvolvimento” centrado nos direitos humanos

CIEDH
09 de abril de 2025
As organizações da sociedade civil de diferentes países da América Latina e do Caribe, reunidas como Plataforma Latino-Americana da Sociedade Civil sobre Empresas e Direitos Humanos, nos encontramos por ocasião do IX Fórum Regional das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos, realizado em São Paulo, para compartilhar nossas experiências de trabalho sobre os impactos das empresas nos direitos humanos e pensar coletivamente estratégias para garantir seu pleno cumprimento.
Este Fórum ocorre em um momento crítico para a humanidade, caracterizado pela persistência de conflitos armados, pela gravidade da mudança climática, pela ocupação ilegal de territórios baseada em genocídios, pelo corte de liberdades e pelas persistentes desigualdades sociais, agravadas pelo avanço de governos de cunho supremacista, negacionista, conservador e recentemente protecionista, que ameaçam bloquear e reverter importantes avanços em direitos políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais conquistados nas últimas décadas.
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Considerando os aspectos previamente abordados, as organizações signatárias declaram e recomendam:
I. É imperativo avançar para um novo paradigma de crescimento e desenvolvimento que priorize o respeito e o cumprimento dos direitos humanos e ambientais, elaborado com base nas prioridades dos povos e comunidades. Consideramos essa a única opção viável para que a humanidade caminhe rumo a cenários de convivência pacífica entre os Estados, povos e territórios, evitando a catástrofe ambiental, econômica, social e cultural à qual estamos nos encaminhando com o atual modelo econômico global. Esse modelo aprofunda e torna irreversíveis as graves afetações sofridas por comunidades e povos indígenas, trabalhadores, pequenos produtores, minorias étnicas e diversidades sexuais e de gênero.
II. Os Estados — em consulta com a sociedade civil e os titulares de direitos — devem incorporar, como parte de seus objetivos e planos de governo, a aprovação de marcos normativos sobre Empresas e Direitos Humanos e Devida Diligência que incluam os Princípios Orientadores da ONU de forma taxativa e vinculante, destinando recursos institucionais e financeiros para sua aplicação prática e sustentável.
III. Os Estados devem garantir, por meio de marcos normativos e políticas públicas efetivas, que as empresas e instituições financeiras envolvidas na chamada “transição energética” respeitem os direitos humanos e ambientais — em especial das mulheres, povos e comunidades que habitam os territórios de exploração ou vivem em seu entorno, ou que dependem dos mesmos ecossistemas e recursos hídricos. É fundamental colocar as pessoas no centro, assegurando seus direitos frente à crescente demanda por minerais e aos impactos das atividades de petróleo e gás, com modelos de negócios que assegurem prosperidade compartilhada e direitos trabalhistas dignos em toda a cadeia de valor.
IV. As empresas devem abster-se de violar direitos humanos e ambientais. Devem também adotar medidas preventivas e implementar processos de devida diligência centrados nas pessoas em sua gestão de riscos. Devem garantir processos de consentimento e, quando for o caso, consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas e comunidades afetadas pela transição energética, evitando a imposição de projetos sem consentimento, assegurando negociações justas e mecanismos de justiça e reparação por quaisquer danos causados. A reparação deve ser integral, efetiva e célere, proporcional aos danos ao meio ambiente e aos direitos humanos.
V. As empresas devem abster-se de obstruir o trabalho de defensoras e defensores de direitos humanos, incluindo lideranças de comunidades indígenas, afrodescendentes, rurais, comunidades tradicionais e sindicatos.
VI. Os Estados que ainda não o fizeram devem ratificar o Acordo de Escazú e desenvolver e implementar, com recursos adequados, leis e políticas para garantir um ambiente seguro e favorável à defesa dos direitos humanos. Isso inclui o reconhecimento e o fortalecimento dos sistemas comunitários de autoproteção existentes na região. Além disso, devem garantir a implementação de mecanismos efetivos de proteção social e trabalhista para trabalhadores e comunidades afetadas por atividades empresariais, assegurando que a transição energética não gere maior precarização nem violações de direitos.
VII. Os atores financeiros envolvidos com instrumentos de finanças sustentáveis devem garantir o respeito aos direitos humanos e ambientais. Isso é essencial para que tais instrumentos — especialmente os voltados à redução de Gases de Efeito Estufa — não encubram violações como trabalho escravo, trabalho infantil, destruição de ecossistemas ou contaminações em massa que causam doenças às comunidades afetadas. Devem também evitar o “greenwashing” (maquiagem verde), verificando no território e com organizações da sociedade civil e comunidades impactadas a veracidade das informações fornecidas por seus clientes.
VIII. Os Estados devem regular, fiscalizar e sancionar instituições financeiras que descumpram sua responsabilidade de respeitar os direitos humanos — especialmente aquelas que financiem projetos que violem direitos humanos, trabalhistas e ambientais. Devem prevenir e detectar fluxos ilícitos provenientes de trabalho forçado, tráfico de pessoas, escravidão, destruição ambiental e territorial, entre outros. É urgente erradicar práticas ineficazes de auditoria e fiscalização, incluindo o greenwashing, e considerar sua sanção. Propomos a implementação de confisco, embargo e extinção de domínio de ativos ilícitos, priorizando a reparação às vítimas.
IX. Os Estados da região — especialmente os que compartilham fronteiras e são afetados por atividades como a mineração de ouro — devem estabelecer uma estratégia coordenada para controlar o tráfico de ouro, combustíveis, máquinas, mercúrio e outros insumos, além de adotar uma política comum para evitar a lavagem e exportação irregular de ouro. Essa estratégia deve diferenciar mercados formais, ilegais, criminosos e a economia artesanal praticada por comunidades indígenas e camponesas, ameaçadas pela extração voltada ao tráfico e crime organizado.
X. Reconhecendo a crescente preocupação com os riscos da interação entre atividades empresariais, economias ilegais e grupos violentos em setores como mineração, agroindústria e comércio de madeira, recomendamos o desenvolvimento e a implementação de mecanismos obrigatórios de rastreabilidade nas cadeias de fornecimento de alto risco, acompanhados de protocolos específicos para prevenir crimes ambientais, lavagem de dinheiro e violações de direitos humanos.
XI. Esses mecanismos devem garantir transparência, auditabilidade e acessibilidade das informações em toda a cadeia de valor. Devem também incorporar padrões de devida diligência reforçada em contextos de alta conflitualidade, a fim de prevenir qualquer contribuição, direta ou indireta, às economias ilícitas ou dinâmicas de violência.
XII. Reconhecemos a urgência da transição energética como resposta à crise climática, mas alertamos que ela não pode ser implementada à custa dos direitos dos trabalhadores e comunidades, nem manter inalteradas as desigualdades e injustiças climáticas. Denunciamos a persistência de um extrativismo “verde” que reproduz a lógica colonial e patriarcal, aprofundando desigualdades e conflitos socioambientais. Os sindicatos, junto às comunidades e demais organizações da sociedade civil, devem ter papel protagonista na defesa dos direitos trabalhistas, do direito a um meio ambiente saudável e da justiça social na construção de uma transição energética justa, exigindo modelos de desenvolvimento que priorizem a criação de empregos decentes, a participação efetiva e a distribuição equitativa dos custos e benefícios.
XIII. Os Estados devem comprometer-se com as discussões do Grupo de Trabalho Intergovernamental de Composição Aberta sobre Empresas Transnacionais e outras Empresas com respeito aos Direitos Humanos, para a construção de um instrumento jurídico internacional vinculante no âmbito das Nações Unidas. O compromisso regional é fundamental para que esse instrumento reflita o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e os avanços já alcançados pelos países latino-americanos. Um tratado nesse tema é de extrema importância para que se reconheça a complexidade das cadeias globais de produção e se estabeleçam mecanismos de extraterritorialidade que evitem a impunidade corporativa e garantam reparação por violações de direitos humanos e ambientais em nossos territórios. As vozes das comunidades e populações afetadas devem ser a base dessa construção.
XIV. As empresas devem ampliar seu compromisso com a equidade de gênero e diversidade sexual para além do ambiente interno de trabalho, integrando uma abordagem interseccional em todas as suas dimensões de impacto social. Isso inclui erradicar a discriminação interna por meio de políticas claras, formação em inclusão real e mecanismos de denúncia eficazes. Também devem adotar devida diligência em direitos das pessoas LGBTIQ+, e repensar seu impacto externo — seus produtos, serviços e campanhas de marketing devem romper com estereótipos prejudiciais e evitar o uso oportunista de causas sociais (pinkwashing). Em vez disso, devem apoiar iniciativas comunitárias, combater discursos de ódio e promover políticas públicas que protejam os direitos humanos, mesmo diante de retrocessos políticos.